quarta-feira, 16 de abril de 2008

As Reformas Religiosas

Já sabemos que a Igreja foi uma poderosa instituição medieval. Apesar disso, entre os séculos XI e XIII, ela passou por diversas crises e mudanças, surgindo daí numerosos mo­vimentos que criticavam seus valores e posturas:

as heresias, que contestavam certos dogmas da Igreja Católica e por isso foram dura­mente perseguidas;

as ordens mendicantes, correntes internas que questionavam a preocupação da Igreja com as questões materiais;

as reações da própria Igreja para combater esses movimentos, principalmente a re­forma gregoriana (do papa Gregório VII, na primeira metade do século XI) e a instituição da Santa Inquisição, no século XIII.

A partir do século XV, as críticas à Igre­ja Católica retornaram, ganhando muita for­ca no século XVI. Os conflitos e as diferenças dentro da Igreja tornaram-se tão intensos nesse século, que acabaram gerando uma cisão na cristandade por meio da Reforma Protestante.

Alguns fatores gerais

No século XV, com as profundas trans­formações que ocorriam na Europa (a ex­pansão marítima, o renascimento urbano e comercial e o humanismo/Renascimento), os movimentos que questionavam o exces­sivo comprometimento da Igreja Católica com os problemas mundanos e materiais ganharam mais espaço e força para se de­senvolver.

Dois fatos colaboraram muito para agra­var ainda mais a situação da Igreja ao longo dos séculos XV e XVI:

a crescente onda de corrupção com a ven­da de indulgências, relíquias religiosas e cargos eclesiásticos importantes, bem como a concubinagem do clero;

os abusos políticos cometidos pelo papa (autoridade máxima da Igreja), que, mes­mo perdendo poder para as monarquias nacionais, enfraquecendo-se, envolvia-se em acordos e golpes políticos com o objetivo de universalizar sua influência na Europa católica.

A Igreja tornava-se cada vez mais vulne­rável tanto no aspecto moral quanto no re­ligioso. As insatisfações generalizavam-se por toda a Europa.

A burguesia estava insatisfeita porque seus interesses chocavam-se com as postu­ras da Igreja, como, por exemplo, a conde­nação da usura (lucro proveniente de juros exagerados) e da cobiça (desejo de possuir bens materiais e poder). Os Estados nacio­nais (ou o rei) queriam limitar os poderes temporais da Igreja nas suas fronteiras. O fiel de origem humilde via a Igreja defen­dendo a exploração feudal e não encontra­va nela o apoio espiritual de que tanto precisava naquela época de crise.

No aspecto teórico, o Renascimento foi muito importante, uma vez que, de acor­do com sua postura antropocentrista, va­lorizava o homem e sua individualidade e ainda o espírito crítico do intelectual e cientista. Isso contribuiu muito para uma aproximação entre fé e razão e para a revi­são de atitudes religiosas, como a idéia de que a interlocução com Deus poderia ser individual, sem a mediação do clero; ou ainda que a interpretação da Bíblia deve­ria ser livre e pessoal.

Gradativamente foram sendo criadas na Europa condições para o surgimento de reli­giões mais adaptadas ao espírito capitalista.

Nesse quadro de insatisfações surgiram os primeiros reformistas: o inglês John Wycliffe, professor da Universidade de Oxford, já de­fendia (entre o final do século XIV e o início do XV) a livre interpretação da Bíblia, o fim dos impostos clericais e questionava a existên­cia da hierarquia eclesiástica.

O checo John Huss, professor da Uni­versidade de Praga, foi um seguidor das ideias de Wycliffe. Ele defendia, nessa mesma épo­ca, a utilização das línguas nacionais nos cultos religiosos, em vez do latim; chegou até a traduzir a Bíblia para seu idioma, o que era um sacrilégio. Foi condenado pela Igreja em 1417 e morto na fogueira.

Essas primeiras iniciativas não tiveram muita repercussão, ficando restritas às igre­jas de seus países, o que não ocorreu com os reformadores seguintes.

No século XVI, a Alemanha não era como a conhecemos hoje; ela fazia parte de um impé­rio mais extenso, o Sacro Império Romano-Germânico. Esse Império estava dividido em diversas regiões independentes, os principados. Logo, o poder estava descentralizado nas mãos dos príncipes (a centralização do Estado alemão só viria a ocorrer no século XIX), que coman­davam todas as ações na sua região.

O Sacro Império e a Igreja Católica dis­putavam o poder na região, produzindo al­guns conflitos. Grande proprietária de terras, a Igreja alemã continuava vinculada ao mun­do feudal, explorando os camponeses e im­pedindo o desenvolvimento do comércio e, conseqüentemente, da burguesia. Além dis­so, em razão da sua grande força nas ques­tões temporais, a corrupção e a decadência moral da Igreja assumiam grandes propor­ções na Alemanha. A sociedade, de maneira geral, a via de forma muito negativa.

Por isso, em outubro de 1517, o monge agostiniano (portanto, membro da Igreja Católica) e professor universitário Martinho Lutero (1483-1546) afixou na porta da ca­tedral de Wittenberg noventa e cinco teses em que denunciava e protestava contra a venda de indulgências.

O papa, na época Leão X, exigiu sua retratação, o que não ocorreu, prolongan­do o conflito por cerca de três anos. Final­mente, em 1520, Lutero foi excomungado pelo papa. Para demonstrar sua insatisfa­ção, ele queimou em público a bula papal que o condenava. Em virtude de seu radi­calismo, Lutero foi proscrito do Império. No entanto, o príncipe Frederico da Saxônia o acolheu em seu castelo.

Protegido no castelo, Martinho Lutero traduziu a Bíblia do latim para o alemão (o que era proibido na época) e desenvol­veu três ideias básicas do luteranismo:

"Só Deus." Rompendo com um princí­pio básico do catolicismo, afirma que não deve haver intermediação entre o homem de fé e Deus. Essa diretriz retirava da Igre­ja e seus quadros a autoridade sacra; por­tanto, a hierarquia eclesiástica e o papa não tinham importância nenhuma.

"Só as Escrituras." A Igreja não é a única capaz de interpretar a Bíblia. Segundo Lutero, todo homem de fé teria a capaci­dade de compreendê-la e interpretá-la, daí a necessidade de traduzi-la para as lín­guas populares.

"Só a fé salva." Novamente a estrutura e a autoridade eclesiásticas são questionadas. Ninguém tem a delegação da justiça divi­na, seja para punir, perdoar ou dar a graça, apenas Deus e os homens de fé que acredi­tam nisso. O fiel jamais teria certeza da sal­vação de sua alma após a morte. Tudo o que podia fazer era manifestar sua fé.

Além disso, ele afirmava que as obras, santos e sacramentos tradicionais da Igreja Católica de nada serviam. Apenas dois dos sete sacramentos da Igreja tinham validade: o batismo e a eucaristia.

As ideias da Reforma Luterana espalha­ram-se pelo Sacro Império Romano-Germânico e provocaram diversos conflitos sociais, políticos e religiosos.

Alguns nobres apropriaram-se de terras da Igreja, pela conversão ao luteranismo; outros, decadentes, atacaram violentamente, em 1522 e 1523, principados católicos (a Revolta dos Cavaleiros) para se apoderar de suas riquezas. Houve reação dos católicos, que impediram e esmagaram a revolta.

Esses conflitos armados motivaram a or­ganização de camponeses e trabalhadores ur­banos envolvidos na Revolta dos Cavaleiros. Liderados pelo sacerdote luterano Thomas Munzer, esse movimento foi profundamente influenciado pelo anabatismo.

O anabatismo era uma corrente refor­mista mais radical; rejeitava qualquer sa­cerdócio, já que Deus se comunicava diretamente com os eleitos, combatia a riqueza, a miséria e a propriedade privada e pregava a igualdade social. Por causa desses princí­pios, o anabatismo era muito divulgado en­tre a população mais pobre e deu um tom revolucionário às revoltas.

Temendo o desenvolvimento das revoltas populares, nobres e burgueses, católicos e luteranos (com a concordância de Lutero) uni­ram-se para combater o inimigo comum. Em 1525, um grande exército marchou contra os revoltosos, eliminando cerca de cem mil pes­soas e decapitando o líder Thomas Munzer.

Com o fim das revoltas populares, as no­brezas católica e luterana voltaram a se en­frentar, lutando por terras e poder. O imperador Carlos V, fiel à Igreja, procurou por fim às agitações convocando, em 1530, a Dieta de Augsburgo (uma espécie de as­sembleia de nobres) para discutir os confli­tos. Ele tentava conciliar as posições de reformistas e católicos. Mas os luteranos, por intermédio de Melachton, discípulo de Lutero, reafirmaram suas posições na Con­fissão de Augsburgo, e as lutas reiniciaram.

A nobreza luterana organizou uma Liga militar (Liga de Esmalcalda), para comba­ter os exércitos imperiais. As lutas estende­ram-se até 1555, quando foi assinada, pelo novo imperador Fernando I, a paz de Augsburgo. Este tratado de paz reconheceu a divisão religiosa da Alemanha e determi­nou que o povo de cada principado deveria seguir a religião de seu príncipe.

Com o fortalecimento do luteranismo na Alemanha, ele começou a influenciar os países escandinavos (Suécia, Dinamarca e Noruega). Todos os reis dessa região se converteram ao protestantismo, determi­nando o fim da influência católica nesses países.

Na França, antes da forte influência luterana, alguns humanistas haviam tenta­do realizar uma reforma religiosa mais pací­fica, mas não alcançaram nenhum sucesso. O catolicismo nesse país era bastante forte e tinha o apoio da monarquia.

As ideias de Lutero continuavam se es­palhando pela Europa. Na França, um es­tudioso das artes liberais e de Direito chamado João Calvino (1509-1564) aderiu à reforma religiosa pregada por Lutero. O reformismo de Lutero tornou-se mais radi­cal nas concepções de Calvino:

o homem, um pecador por essência, só podia se salvar pela fé;

Deus é transcendente (superior, acima do mundo real) e incompreensível; Ele só re­velou aquilo que quis revelar através das Escrituras;

a predestinação divina absoluta já desti­nava o futuro do homem à salvação ou à condenação.

Perseguido, Calvino refugiou-se na ci­dade suíça de Genebra, em 1536. A Suíça era um país onde as ideias reformistas luteranas já tinham alguma força devido à pregação de Ulrich Zwingli (1484-1531).

Apoiado pela burguesia local, Calvino desenvolveu suas ideias e deu um novo vi­gor militante ao reformismo. Ele pregava a valorização do trabalho, pois somente este traria sucesso material, considerado uma espécie de predestinação divina; dizia que o enriquecimento era uma graça de Deus e a pobreza uma condenação; não condenava o empréstimo de dinheiro a juros, como a Igreja Católica fazia.

Por isso, Calvino acumulou força polí­tica e assumiu o governo da cidade. Go­vernando como um autêntico déspota, sua administração impôs rígidos costumes mo­rais: proibiu o jogo de cartas, a dança e o teatro.

Como suas ideias iam diretamente ao encontro das necessidades burguesas de acúmulo de capital e de valorização do trabalho, o calvinismo se espalhou rapidamente pela Europa. Na Escócia foi organizada a Igreja Presbiteriana, inspirada no calvinis­mo; no norte dos Países Baixos (Holanda), originou-se o movimento dos puritanos, que se difundiu para a Inglaterra e para a Fran­ça, onde, apesar das resistências, assumiu uma face mais radical com os huguenotes.

A Reforma na Inglaterra teve um caráter bem original.

A Igreja Católica, ao mesmo tempo que era muito rica em terras, dependia da proteção do Estado. Henrique VIII, rei da In­glaterra, condenou, a princípio, o ideário luterano e perseguiu seus seguidores, sen­do condecorado pela Igreja como "Defen­sor da Fé".

Entretanto, o rei preten­dia assumir as terras e as ri­quezas da Igreja Católica e, assim, enfraquecer sua influência. A justificativa para concretizar o cisma foi a recusa do papa em dissolver o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão, que não podia lhe dar um filho herdeiro (o que criaria problemas políticos de heredita­riedade no Reino). O rei não recuou diante da recusa da Igreja e casou-se novamente com Ana Bolena, sendo excomungado. Henrique VIII repetiria o ato, de acordo com seus in­teresses políticos, casando-se seis vezes.

O rompimento oficial deu-se em 1534, quando o Parlamento inglês aprovou o Ato de Supremacia, que colocava a Igreja sob a autoridade do rei. As propriedades da Igreja Católica passaram às mãos do rei e da nobre­za. Todos os dogmas da Igreja Católica fo­ram mantidos, exceto a autoridade papal, que devia se submeter à do rei. Nascia, assim, a Igreja Anglicana, gerando insatisfação entre católicos e protestantes. Portanto, as razões da separação entre o Estado e a Igreja não eram religiosas, mas políticas e econômicas.

Após a morte de Henrique VIII, assu­miu o trono seu filho Eduardo VI, que morreu logo em seguida, ainda criança. Ele foi sucedido por Maria Tudor, filha de Catarina de Aragão; católica, perseguiu os protestantes durante todo seu reinado (1547-1558), gerando vários conflitos político-religiosos. Nesse clima tenso assumiu o trono Elizabeth I, filha de Henrique VIII com Ana Bolena. Nesse período (1558-1603), a In­glaterra alcançou a paz religiosa, e o anglicanismo ganhou uma face mais defini­da, misturando elementos do ritual católi­co com os princípios da fé calvinista.

Contra-Reforma Católica

A Reforma Protestante implicou mu­danças sociais e políticas em toda a Euro­pa. Com a crise da Igreja Católica, a maioria das populações do centro e do norte da Europa convertia-se ao protes­tantismo, principalmente porque ele se ajustava melhor ao universo do capitalis­mo em evolução. Isso causou imediata­mente sérios problemas políticos, levando ao conflito violento os adeptos das duas religiões e ao confronto os Estados católi­cos e protestantes.

A Igreja Católica cada vez mais perdia espaços no quadro geopolítico europeu, além de sofrer pesadas perdas de fiéis. Procurando impedir o avan­ço da Reforma Protestante, ela realizou sua própria reforma, baseada nos padrões mais tradicionais do catolicismo, o que ficou co­nhecido como Contra-Reforma.

A Igreja tentaria combater o protestan­tismo e restaurar a hegemonia do catolicis­mo por meio da doutrina ou da força. Para alcançar tal objetivo, a Igreja precisou to­mar algumas atitudes:

A reativação da Inquisição, ou Tribunal do Santo Ofício. A Inquisição foi criada no século XIII para julgar e punir os he­reges. Ela reassumiu esse papel, no sécu­lo XVI, e obteve muita força nas monar­quias católicas de Portugal e Espanha, que usaram a Inquisição para perseguir principalmente os judeus; estes transfe­riram-se em grande número para os Paí­ses Baixos ou se converteram (os cris-tãos-novos).

A criação da Companhia de Jesus, em 1534, por Inácio de Loyola, com o ob­jetivo de divulgar o catolicismo, prin­cipalmente por meio da educação. Organizados em moldes quase militares, os jesuítas foram muito importantes para a defesa do catolicismo e sua propagação na América e na África. Nesses dois con­tinentes recém-colonizados, eles conse­guiram um grande espaço para o catolicismo pela educação e catequização dos indíge­nas (é o caso de lembrar aqui dois desta­cados jesuítas na catequização dos índios brasileiros, José de Anchieta e Manoel da Nóbrega).

No campo doutrinário, o papa Paulo III organizou o Concílio de Trento (1545-1563) para definir quais as novas posturas católicas. De forma geral, todos os dogmas e sacramentos condenados pelos protestan­tes foram reafirmados nesse Concílio.

Foi criado o índice dos Livros Proibidos (Index Librorum Prohibitorum), em 1564. Tratava-se de uma lista de livros proibi­dos elaborada pelo Tribunal do Santo Ofício. Toda obra impressa deveria pas­sar pela análise do Tribunal, que o "re­comendava" ou não aos católicos. Na realidade, a Igreja estava censurando obras de artistas, cientistas, filósofos e teó­logos. Um cientista que teve suas obras reprovadas foi Galileu Galilei.

Foi reafirmada a infalibilidade do papa, defendendo sua autoridade sobre todos os católicos.

As obras e sacramentos foram mantidos como fundamentais para a salvação da alma.

Foram criados seminários para a forma­ção intelectual e religiosa dos padres.

Foi proibida a venda de indulgências e relíquias eclesiásticas.

Foi mantido o celibato clerical (proibi­ção do casamento de padres e freiras).

Como se vê, a Contra-Reforma mantinha-se dentro da tradição. Tal postura aca­bou produzindo intolerância religiosa de ambos os lados, acirrando os conflitos entre católicos e protestantes por toda a Europa.

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